O princípio do bem comum

O princípio do bem comum

Nesse texto tratarei com mais detalhes do princípio do bem comum queconsiste “no conjunto de condições da vida social que permitem o homem atingir mais plena e facilmente a própria perfeição”1, ou seja, todas as condições materiais e espirituais que contribuem para que o homem atinja sua perfeição. Como a imagem do homem perfeito é Jesus Cristo, a perfeição última do homem nada mais é que a plena configuração a Ele, o que a Igreja chama de santidade. Partindo desse princípio podemos então afirmar que tudo o que impede que o homem trilhe seu caminho de santidade, está contra o princípio do bem comum.

É importante para compreensão deste princípio, conhecer o que é santidade, se ela é uma vocação para todos ou para poucos privilegiados e se a santidade deve ser algo de responsabilidade exclusiva da Igreja ou se também cabe alguma responsabilidade para a autoridade política, sendo essa última questão o principal objeto desse texto.

Então, o que é santidade?
É a configuração do nosso coração ao Coração de Cristo. Uma pessoa está no caminho de santidade quanto mais o seu coração se vai conformando com o de Cristo, a ponto de ela chegar ao estado de perfeição em que chegou São Paulo, quando disse: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim” (cf. Gl 2, 20).

A santidade é uma vocação para todos ou é reservado para alguns privilegiados?

A Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, tratou, em seu quinto capítulo, a respeito da “vocação de todos à santidade na Igreja”, ensinando que “os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade”. 2 Assim a Igreja afirma que a santidade é de vocação universal, logo TODOS os homens devem ter o direito de dispor de todos os meios para se alcançar tão alta vocação.

Como ao homem, por sua própria natureza, não consegue alcançar o grau máximo de perfeição, é necessário que disponha dos meios sobrenaturais para alcançar esse fim, meios esse que só a Santa Igreja Católica é dispensadora como Corpo Místico de Cristo, e de forma especialíssima, por meio dos Sacramentos.

A santidade deve ser algo de responsabilidade exclusiva da Igreja ou também cabe alguma responsabilidade para a autoridade política?

Primeiramente é preciso compreender que santidade é um caminho que se vive no tempo e, por ser um caminho, ele é alcançado de forma gradual avançando em graus de perfeição até o grau máximo que é a total configuração do homem a Cristo.

Nesse caminho de perfeição, há em uma extremidade os homens de boa vontade, abertos ao conhecimento da verdade e que possuem virtudes “conforme a condição da sua natureza em que pela prática dessas mesmas virtudes procede retamente na prática dos seus atos” 3, homens esses que mesmo não sendo católicos e até sem conhecerem o Cristo, vivem uma natural vida de virtudes, mesmo que ainda em gérmen, que se voltam para o bem comum de todos, como por exemplo um juiz ateu que faz seus julgamentos de forma justa, conforme a justiça ou um legislador que, mesmo não sendo católico, se opõe a leis favoráveis ao aborto provocado e a eutanásia por reconhecer a lei natural do direito à vida desde a concepção até a morte natural ou ainda um governante que desconhece a profundidade do conceito de paz em Cristo, mas que se empenha para promover a paz ao povo por ele governado, por reconhecer a sua necessidade para o bem do seu governo e dos governados.

Na outra extremidade de uma vida virtuosa temos o grandes Santos que alcançaram o grau máximo de perfeição que, numa vida católica exemplar, tiveram suas virtudes elevadas, por Graça de Deus, às virtudes divinas, virtudes essas que também se voltam para o bem comum de todos, mas num grau perfeito.

No permeio dessas duas extremidades temos os bons católicos que buscam com sinceridade de coração trilhar esse caminho de perfeição, mas que ainda não alcançaram os altos graus de santidade e estão em variados estágios desse caminho e que por isso necessitam que lhes tenham à disposição os meios necessários para trilharem esse caminho até o fim, sejam os meios temporais, sejam os sobrenaturais.

Ficam fora desse caminho de perfeição todo homem ou mulher fechado à verdade e que, deliberadamente, agem contra sua própria razão e natureza, não ascendendo nem mesmo nas virtudes naturais. São desses homens sem virtudes que o Estado deve proteger seus governados em vista do bem comum de todos, pois são exatamente esses homens que com suas ações atentam contra o bem comum. São os corruptos que lapidam o dinheiro da nação; são os assassinos que matam inocentes; são os juízes iníquos que julgam contra a justiça; são os governantes que fazem uso da “máquina do Estado” para perpetuação no poder; são os legisladores que aprovam leis iníquas como a descriminalização do aborto, atentando contra a lei natural mais basilar do direito à vida do inocente desde a concepção até a morte natural. Como esses, há inúmeros outros exemplos de pessoas sem virtudes que atentam contra o bem comum de todos.

O caminho de santidade também exige os meios sobrenaturais, que só a Santa Igreja Católica dispõe, de forma especial, os Santos Sacramentos, e a eles cabem a primazia dos meios. Mas também são necessários os meios temporais, já que o processo de santificação do homem se vive no tempo e por isso o homem necessita que a autoridade política promova e tutele esses meios temporais para que o homem possa ter à sua disposição todos os meios temporais necessários para fazer ascender suas virtudes.

Como vivemos um momento da história em que a Igreja não goza, na sociedade, da mesma autoridade sobre as consciências das pessoas como outrora e onde há um grande embotamento dessas consciências quanto a Verdade que é Cristo, frutos de uma progressiva descristianização da sociedade, momento histórico esse que o Papa Emérito Bento XVI bem chamou de era Neo-Pagã, o ponto de partida para o a autoridade política governar em vista do bem comum, ou seja, um Estado subordinado à Moral Católica, numa sociedade tão plural, são os homens e mulheres de boa vontade que, abertos a verdade e dotados de virtudes conforme a natureza humana, como explicado mais acima, possuem o discernimento racional para reconhecerem a lei natural como fundamento de uma sociedade justa e fraterna. Esses homens e mulheres de boa vontade existem no seio da sociedade e estão em variadas denominações cristãs, religiões e associações humanas e são o ponto de partida para a justa subordinação do Estado à Moral Católica, já que essas pessoas reconhecem o fundamento racional dessa Moral para o bem comum de todos.

O bem comum temporal e sobrenatural

Como já adiantado mais acima, o bem comum é dividido em bem comum temporal e bem comum sobrenatural, onde o primeiro é de responsabilidade da autoridade política e o segundo de responsabilidade da Igreja, estando o bem comum temporal ordenado para o bem comum sobrenatural.

Não tratarei aqui do bem comum sobrenatural, pois ele está muito bem explicado na vasta literatura católica e bem resumida no Catecismo da Igreja Católica, então vou me ater mais ao bem comum temporal que são as condições ordinárias ou temporais para que homem possa encontrar as condições básicas necessárias para usufruir de forma mais plena dos bens espirituais e para conhecer a verdade e assim atingir sua perfeição, assim sendo, o bem comum temporal envolve todos os elementos que favorecem o desenvolvimento do homem no tempo, contribuindo para o crescimento de suas virtudes e o aumento do número de homens virtuosos, elementos esses reconhecidos por todos os homens de boa vontade.

São eles:

  • A paz de todos os que formam a comunidade;
  • O empenho de todos os indivíduos e grupos sociais na ação comum de alcançar uma convivência humana e virtuosa;
  • Os indivíduos e grupos sociais (corpos intermediários) terem à sua disposição os bens materiais, culturais e espirituais que assegurem a plenitude de uma vida virtuosa.
  • Um Estado que coordene todos os esforços e atividades do corpo social para os fins supracitados.

Assim sendo, o bem comum temporal exige4:

  • O empenho pela paz;
  • A organização virtuosa dos poderes do Estado;
  • Uma sólida ordem jurídica;
  • A salvaguarda do ambiente;
  • A prestação dos serviços essenciais às pessoas como: alimentação, moradia, trabalho, educação e acesso à cultura, saúde, transportes, livre circulação das informações e tutela da liberdade religiosa.

Mas para que essas exigências sejam verdadeiramente postas em prática, o Estado deve respeitar as condições impostas pela ordem natural estabelecida por Deus para que, de forma verdadeira, o bem comum seja sua finalidade e essas são as condições:

  • A tutela dos direitos humanos universais, invioláveis e inalienáveis, em especial o mais basilar dos direitos humanos: o direito à vida desde a concepção até a morte natural 5;
  • Família monogâmica, formado da união entre um homem e uma mulher, indissolúvel e responsável pela educação dos filhos 6;
  • Economia baseada nos corpos intermediários, que são os agrupamentos de pessoas que buscam fins semelhantes (será melhor explicado quando tratarmos do princípio da subsidiariedade) e que estão entre o mais basilar dos corpos naturais, a família, e o corpo natural governante de todos os outros corpos, o Estado, estando ao serviço do homem de modo que contribuam a atuar o princípio da destinação universal dos bens 7;
  • Autoridade da sociedade virtuosa e firme, não subordinada aos caprichos dos grupos e indivíduos que a compõe, ou seja, uma autoridade que de fato se submeta a verdade e não a perverta por razões político-ideológicas e tenha o bem comum como sua finalidade 8.

Com o exposto até aqui, é possível compreender que não há um bem comum temporal verdadeiro sem que o mesmo tenha como fim último o bem comum sobrenatural, com isso se entende que, apesar de haver uma distinção de fins entre o Estado e a Igreja, já que o Estado visa o bem comum temporal e a Igreja visa o bem comum sobrenatural, há uma necessária colaboração entre o Estado e a Igreja, que é a subordinação do Estado à Moral Católica, pois sem essa subordinação não há Estado virtuoso e consequentemente ele não promoverá um verdadeiro bem comum temporal. 9 É necessário, de fato, fazermos a distinção dos fins entre Estado e Igreja, pois não cabe a Igreja legislar e governar o que é temporal, mas sim às almas para o bem eterno delas, mas também é necessário que o Estado cumpra o seu papel de promover o bem comum temporal que exige um Estado virtuoso, que só é possível com a colaboração indispensável da Santa Igreja Católica 9, pois a Igreja é perita em humanidade. 10

Para encerrar esse texto é necessário responder a uma constante acusação contra a Igreja de que esse tipo de Estado, que deve se subordinar a Moral Católica, está ferindo o princípio do estado laico. Em primeiro lugar, Estado laico comporta o respeito de toda confissão religiosa, que assegura o livre exercício das atividades cultuais, espirituais, culturais e caritativas das comunidades dos crentes 11e não um Estado laicista, que nega a influência da religião no âmbito político, ético e cultural. Esse tipo de estado laicista, que nada mais é na prática que um Estado ateu, foi condenado em muitos Documentos da Igreja, inclusive no Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 11

Foi sobre base católica que o ocidente construiu sua identidade, com forte influência nas leis que regem as nações e na cultura dos povos. Os direitos humanos só existem porque foi a Igreja Católica que os definiu, tendo como princípio a dignidade superior do homem em relação a toda a obra criada, dado a singularidade do homem ser imagem e semelhança de Deus e remido pelo Sangue do Cordeiro. Assim sendo, a retirada da influência da religião, mais especificamente da Fé Católica, no âmbito da política é a negação de toda a base que fez construir o que hoje entendemos como civilização.

Em segundo lugar, a Moral Católica não é algo que somente pela luz sobrenatural da fé se reconhece, mas se reconhece com a luz natural da razão, ou seja, todos os homens de boa vontade podem reconhecer, mesmo os não católicos, pois a lei natural, que é a base da Moral Católica, está inscrita na natureza humana e não pode ser separada do ser do homem e a razão humana pode reconhecê-la, basta ter abertura à verdade e ser honesto com a realidade e com sua própria natureza. A negação da lei natural, “prospecta uma condição de anarquia moral cuja consequência é a prepotência do mais forte sobre o mais fraco e não pode ser acolhida por nenhuma forma legítima de pluralismo, porque mina as próprias bases da convivência humana. À luz deste estado de coisas, a marginalização do Cristianismo não poderia ajudar ao projeto de uma sociedade futura e à concórdia entre os povos; seria, pelo contrário, uma ameaça para os próprios fundamentos espirituais e culturais da civilização.” 11

Salve Maria e Viva Cristo Rei!

Rômulo Felix do Rosario, casado, pai de 5 filhos, sendo 3 no Céu, médico pediatra, professor no Centro Anchieta (www.centroanchieta.org), uma iniciativa de fiéis católicos que visa promover a cultura católica nos mais variados âmbitos da vida do homem tendo como finalidade a busca da santidade. Coordenador do Projeto Social Vida, um grupo pró-vida da paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, área pastoral de Vila Velha e Ministro Extraordinário da Distribuição da Sagrada Comunhão Eucaristia na mesma paróquia.

Referências

  1. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2005, cân. 164.
  2. Constituição Dogmática Lumen Gentium (21 de novembro de 1964), 40.
  3. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II Q 61, a. 5
  4. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2005, cân. 166.
  5. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2005, cân. 152-155.
  6. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2005, cân. 215-218.
  7. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2005, cân. 283. 356-357.
  8. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2005, cân. 168-170.
  9. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2005, cân. 424-427.
  10. Carta Encíclica do Papa São Paulo VI – Populorum Progressio, nº 13
  11. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2005, cân. 572.

Pascom Paróquia Bom Pastor

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